quinta-feira, 12 de junho de 2014

A incrível viagem de Shackleton

Havia lido a respeito deste livro à época de seu lançamento e, já naquela ocasião, fiquei interessado. Depois disso não voltei a pensar nele até que, semana passada, um amigo o trouxe para mim, com a garantia de que eu não conseguiria largá-lo. Pura verdade.
Em sua capa, logo abaixo do título, aparece a frase: "A mais extraordinária aventura de todos os tempos". Na verdade, não chega a ser uma chamada original. O problema é que a gente vê chamadas deste tipo a toda hora, frequentemente aplicadas para atrair a atenção sobre obras que nem de longe cumprem sua promessa. Não é o caso desta aventura, que se não foi a mais extraordinária, está entre as maiores de todas.
Resolvi buscar no dicionário pelo verbete aventura, e o que está ali se aplica com perfeição à viagem de Schackleton:
  • Feito extraordinário;
  • Caso inesperado que sobrevém  e merece ser relatado;
  • Acaso.
E qual foi, afinal, esta viagem? Não foi coisa pouca, mesmo para os dias atuais, com toda tecnologia que temos disponível: viajar de navio até a Antártica e, uma vez desembarcados, realizar o caminho até o Polo Sul. Para Schackleton, na realidade, seria a terceira tentativa de atingir o objetivo. Em 1901 fez parte da equipe chefiada por Robert F. Scott, que chegou à marca de 1.198 Km de distância do Polo. Na segunda tentativa, chefiada pelo próprio Schackleton em 1907, conseguiram chegar até 156 Km do destino, mas houve escassez de alimentos e tiveram que abortar a expedição e correr para não morrerem de fome. Nesta terceira expedição aportariam no mar de Weddell, executariam o caminho terrestre através de trenós e fariam a saída pelo extremo oposto do continente, usando mantimentos que seriam espalhados por outra equipe ao longo do itinerário. Entretanto, como pode ser lido na contracapa do livro, não foi bem assim:
"No verão de 1914, Sir Ernest Schackleton parte a bordo do Endurance em direção ao Atlântico Sul. O objetivo de sua expedição era cruzar o continente antártico. Mas, a apenas um dia do porto de desembarque planejado, o Endurance fica aprisionado num banco de gelo no mar de Weddell e acaba sendo destruído."
Esperar por um resgate seria impossível. A chance de que isso acontecesse era zero e tampouco se dispunha de meios. E o ano era 1914, a Europa estava envolvida com a recém iniciada I Guerra Mundial, o que significava estarem esquecidos, literalmente, no fim do mundo. A única alternativa era seguir com os trenós, os três barcos salva-vidas e tudo que pudessem carregar de mantimentos, através das banquisas e, ao chegar em mar aberto, navegar por um dos mares mais traiçoeiros de todos os oceanos e tentar chegar a uma ilha onde houvesse um porto seguro.
E assim iniciou a jornada de quase dois anos de Schackleton e sua equipe de vinte e sete homens rumo ao imponderável. Ao longo das 346 páginas, que parecem muito poucas pela riqueza da narrativa, Alfred Lansing conta como Schackleton conduziu, do início ao fim e sem nenhuma baixa, a mais espetacular e perigosa de todas as suas expedições.
O carisma e liderança de Schackleton são indiscutíveis, fato que, em grande parte, explica o resultado final positivo da expedição. E não se pode, nunca, alegar que ele, em algum momento, mentiu para o seus comandados. Já no recrutamento da equipe, os possíveis percalços estavam bem claros, como pode ser observado pela chamada que fez através de alguns jornais:
"Precisa-se homens para viagem perigosa, pequenos salários, frio intenso, longos meses de completa escuridão, perigo constante, retorno duvidoso, honra e reconhecimento em caso de sucesso."
O mais incrível é que apareceram mais de cem homens desejosos de participar da aventura.
Selecionei algumas imagens, que não aparecem no livro, o que é uma pena, para dar uma ideia de tudo que se passou. E podem ter certeza, o que relatei aqui é muito pouco comparado a tudo que apresenta o livro. E os feitos mais impressionantes, é claro, nem cheguei a comentar.
Boa leitura!

Serviço:

Título: A incrível viagem de Shackleton
Autor: Alfred Lansing
Editora: Sextante

Imagens:


Endurance, encalhado no gelo e adernando.


Endurance, completamente esmagado pelo gelo.


Uma das três baleeiras, a James Caird, puxada pelo trenó.

Partindo da ilha Elephant na James Caird.

O grupo, incompleto, na ilha Elephant.

Faça parte desta equipe!

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Cães da Província ou Encontro com Qorpo-Santo


Porto Alegre, século XIX. A capital da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul ainda está longe de ser considerada uma cidade grande, tampouco aprazível para se morar. Está concentrada no entorno da rua da Praia, ou rua da Graça, como também era conhecida, e da praça da Matriz, onde se concentram os Poderes: a igreja da matriz e o palácio do governo. E, em frente aos dois poderes, cruzando a praça, o teatro São Pedro, que, com apenas uma década de vida, muitas companhias dramáticas, líricas e cômicas já trouxe para as pessoas de bem da orgulhosa cidade.
A partir deste núcleo se espalham as moradias e o comércio da cidade tranquila e laboriosa, onde todos praticamente se conhecem. Por baixo dessa aparência bucólica, porém, como um rio subterrâneo, existe outro mundo: bebedeiras, assaltos noturnos e degolas, homens que se vestem de mulher, tesoureiros que se locupletam, enfim, um lado obscuro a macular a leal e valerosa capital da província.
Assis Brasil (Luiz Antônio de) tem todas as virtudes de um bom escritor. Em primeiro lugar, começa com um trabalho de pesquisa histórica bastante detalhado, o que nos permite ter uma imagem clara da época em que se passa o romance, como se estivéssemos ali, participando do cotidiano da cidade, com suas cenas e odores. A seguir, pela apresentação dos personagens. Somente bons escritores compõem personagens verossímeis, dos quais conseguimos inferir seu caráter, suas angústias e alegrias. Nenhum é caricato, nenhum está sobrando; todos estão perfeitamente ajustados ao enredo.
E o que se passa, afinal? Em meio à vidinha medíocre da província, dois fatos perturbam a sua ordem. Por um lado, os desaparecimentos não explicados de alguns cidadãos, que ficou conhecido como os crimes da rua do Arvoredo. Episódio macabro da história porto-alegrense, no qual, diziam, as vítimas, depois de esquartejadas, teriam virado linguiça pelas artes do assassino, açougueiro que tinha seu estabelecimento nesta rua. De outro lado está José Joaquim de Campos Leão, autointitulado Qorpo-Santo. Ex-comerciante, ex-professor, poeta, dramaturgo, e, para a maioria dos porto-alegrenses, um lunático. Qorpo-Santo diz o que pensa e se comporta de acordo com o que pensa. Separado, trava um embate jurídico contra a ex-esposa, a qual deseja que ele seja interditado judicialmente, de maneira que não possa administrar seus bens. Um embate que extrapola a esfera doméstica e passa a ser de interesse de toda a população.
O talento de Assis Brasil se observa na capacidade de unir dois episódios tão díspares da história da cidade, embora contemporâneos, e juntá-los de forma tão coesa, de maneira que se possa conhecer e entender um pouco da obra de Qorpo-Santo, cujo trabalho e relevância para o teatro só veio a ser reconhecido quase cem anos depois de sua morte.
Como todo bom livro que se preza, este me deixou com vontade de ler mais. Para matar minha curiosidade acerca da obra de Qorpo-Santo, felizmente, existe o site Domínio Público (http://www.dominiopublico.gov.br), onde se pode encontrar toda a obra deste e de outros autores disponíveis para download.
A edição que li, da qual aparece a imagem abaixo, é da Mercado Aberto, editora que já não está entre nós. As edições mais recentes são da L&PM Editores.

Abraço,
Nelson Safi

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O tradutor traduz o autor?


Quando um autor é bom a gente logo percebe. E todo mundo sabe, cada um tem seu jeito de escrever, o que obviamente explica o fato de alguns agradarem mais do que outros. Se estamos falando de textos em nossa língua, mesmo com as nuances regionais, seja qual for a região do planeta, ainda assim será a nossa língua.

E o que dizer dos autores estrangeiros? Em algum momento chega a informação de que fulano é um bom escritor e alguém decide publicá-lo em português (vamos fazer de conta que é simples assim). É evidente que as editoras contam com tradutores qualificados, pelo menos é o que se espera. Como garantir que o jeito especial do autor se expressar, a maneira como ordena suas frases que dá um sentido (ou vários) ao que pretende dizer será alcançada na tradução? Pois é, não é fácil, nada fácil. O tradutor é, de certa forma, um escritor. Aliás, muitos escritores conhecidos são ou foram tradutores. Aqui no estado temos e tivemos vários e, sem querer ser bairrista, creio que de boa qualidade em sua maioria.
Do meu mais profundo "achismo" vem a convicção de que o trabalho de tradução é tão desgastante que, mesmo sendo ele um escritor, não sobrará fôlego para escrever o seu próprio texto. Acredito que o tradutor gaste tanta energia e talento para reproduzir em sua língua o autor original, que pouco ou nada sobre para ele próprio.
E qual seria o maior dilema do tradutor durante a sua maratona profissional? Com certeza ocorre quando este se depara com uma palavra, situação ou expressão que, em hipótese alguma, teria correspondência em nosso idioma. É a hora em que o tradutor tem que ser infiel para ser fiel (estou aqui fazendo uso de uma expressão que o Sergio Faraco utilizou em uma palestra que tive a felicidade de assistir). Ou seja, para preservar a literariedade, a qualidade do autor original, o tradutor se vê obrigado a inventar ou, então, utilizar outra expressão que alcance o mesmo impacto. De tradução o Sergio Faraco entende muito, é dele a melhor versão em português de um livro do uruguaio Mario Arregui, "Cavalos do amanhecer" (L&PM), cujo título original é "Los dos caminhos" (onde estão os cavalos do título?). Mas lendo-se o livro, fica tudo muito claro (para se ter uma ideia da seriedade do trabalho, basta dizer que a tradução foi acompanhada de perto pelo Arregui, que concordou com as modificações). Por outro lado, querem ver como é difícil? Façamos o inverso. Basta pegar um texto, do Guimarães Rosa, por exemplo, e imaginá-lo em alemão, japonês, russo. É tarefa para muito poucos, realmente.
Bem, a verdade é que toda essa conversa acerca de traduções seria para falar do livro "O Tenente Quetange", de I. N. Tyniánov (Cosac & Naify). Isso porque a tradutora, Aurora Bernardini, resolveu de maneira muito mais eficiente o jogo de palavras que dá nome ao livro (e origina toda a confusão). O livro é muito bom e engraçado, e vou pedir que confiem em mim sem que precise explicar a razão. Vou usar do velho recurso de reproduzir um texto da contracapa e contar que isso seja suficiente para despertar o interesse pela história:
"Correm os últimos anos do século XVII e Paulo I ocupa o trono de todas as Rússias, quando um escrivão militar, sonolento e estabanado, altera por acidente o curso da História ou, pelo menos, de uma história ou, melhor dizendo, de duas histórias..."

Ocorre que este livro tem outra história muito interessante, relatada no quase-prefácio de Boris Schnaiderman (responsável por algumas das melhores traduções de Anton Tchékhov). Ele conta um pouco da obra de Tyniánov, de suas peculiaridades, entre as quais o fato de ter permanecido ileso, tanto física como profissionalmente, durante todos os anos de Stálin, o qual por muito menos mandava despachar para um gulag.
Abraço,
Nelson Safi

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Eu também queria ser


Alguém poderia alegar, e não sem um pouco de razão, que minha opinião é um pouco suspeita, já que falarei do livro de um amigo. Mas fazer o quê? Fingir que não o conheço, dizer que não li? Pelo contrário, li e gostei muito do Quero ser Reginaldo Pujol Filho (Não Editora, 2010). Talvez devesse simplesmente dizer: eu também quero ser Reginaldo Pujol Filho. Só que estaria roubando a frase do Marcelino Freire, que "orelhou" o livro. Mas seria uma boa síntese, isso é verdade.
Pois bem, e o que fez o Reginaldo? Escreveu dez contos, cada um homenageando um escritor que ele gosta, ou que o influenciou (acredito que ambos). Claro que, em se tratando do Reginaldo, não é um texto lugar-comum e, óbvio, o humor está presente (digo isso porque, para muitos, para ser um bom texto tem que ser um dramalhão; o Reginaldo é um dos que provam que este conceito é ridículo).
Não tenho dúvida que o leitor, se já tiver lido um texto ou mais dos escritores homenageados, vai saborear muito melhor a leitura. E, se deixou de ler algum, acredito que também vá querer conhecer o original. A lista segue esta ordem: Miguel de Cervantes, Luigi Pirandello, Rubem Fonseca, Luis Fernando Verissimo, Italo Calvino, Amílcar Bettega Barbosa, Machado de Assis, Gonçalo M. Carvalho, Mia Couto e Altair Martins. Em suma, só gente boa. Alguns contos gostei mais do que de outros, mas isso porque sinto o mesmo em relação aos autores; cada um terá os seus preferidos.
Gostaria de falar um pouco de cada um dos contos, mas bom mesmo é ler todos (se eu tentar explicar corro o risco de tirar a graça). Só não vou perder o gostinho de dar uma palhinha. Para isso, escolhi o início do conto Quero ser Machado de Assis:
"Desocupado leitor, a história é a seguinte, quer dizer, não, me perdoe. Não leve a mal o adjetivo desocupado da linha acima, não era exatamente no sentido, digamos, de vagabundo que eu queria falar. Era mais algo como, perceba, você, mas como posso explicar, observe, trata-se de estilo, compreende? Descontrair de uma forma contemporânea com quem está do outro lado, mas longe, longe, deveras longe deste narrador, porventura ofender você. Melhor começarmos assim:
Ocupado leitor - sim, admito, ocupado não chega a elogio, to­davia não ofende -, mas, ocupado leitor, precisamos correr, visto que as delongas acima já atrasam o andar da história e, afinal, é para ler histórias que o amigo tem um livro nas mãos.
Pois acelerarei..."

Além deste, o Reginaldo lançou, em 2007, seu primeiro livro de contos, Azar do personagem, e em 2009 organizou a ótima antologia Desacordo Ortográfico (ambos pela Não Editora)
Serviço:
Título: Quero ser Reginaldo Pujol Filho
Autor: Reginaldo Pujol Filho
Editora: Não Editora
Ano: 2010
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Abraço,
Nelson Safi

Contos de Lev Tolstói

Volto a escrever de uma publicação da Amarilys (Editora Manole). Em minha última crônica falei de "O duelo", do Anton Tchékhov. Agora é a vez de “A morte de Iván Ilitch e outras histórias”, de Lev Tolstói. Pois a Amarilys, de novo, está de parabéns. Outra vez um ótimo escritor, outra vez um livro muito bonito, agradável de ter nas mãos, folhear... Acho improvável que os livros digitais venham a ter esse fascínio. O Umberto Eco, ao que consta, pois ainda não li, escreveu a este respeito em seu livro “A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia”, mas não é este o assunto, nosso caso é o Tolstói.
Mas aproveitando a minha incapacidade de seguir um assunto sem escorregar por alguma vereda, aproveito para recomendar o excelente filme “A última estação”, que mostra as últimas semanas de vida de Tolstói, sob o ponto de vista de um jovem escritor, contratado para acompanhá-lo. Tem-se, a partir do filme, uma boa noção do quanto Tolstói representou para a literatura russa e mundial e, também, o quanto era querido por todos, seja pela sua literatura, pelas ideias que apregoava ou, simplesmente, pela firmeza de seu caráter. Por sinal, achei uma feliz coincidência ter lido este livro antes de assistir o filme. A atitude de Tolstói, ao abandonar a sua propriedade, em Isnaia Poliana, lembra muito o comportamento de seus personagens em seu afastamento do mundo material e busca da liberdade espiritual.
Voltando ao livro, tal como o de Tchékhov, anteriormente citado, também vem prefaciado por Elena Vássina. Repito o que havia dito para o livro do primeiro, adaptando para o de Tolstói: um texto muito bom e agradável, e que ajuda na contextualização da obra em relação à sua época e ao conjunto da obra tolstoiniana. O livro é composto por quatro contos: “A morte de Iván Ilitch”, “Senhor e servo”, “O prisioneiro do Cáucaso”, “Deus vê a verdade, mas custa a revelar”.
“A morte de Iván Ilitch” é uma história de arrepiar. Já pelo título sabemos que o que virá pela frente não será um mar de rosas, nem seria de se esperar, em se tratando de Tolstói. Essa pequena novela começa com a notícia da morte de Iván Ilitch, e que se transforma, logo a seguir na descrição da vida do personagem, sua ascensão social, suas preocupações egoístas, até culminar com o pequeno acidente que provocará a sua doença e morte. E, no caminho até esta, o sentimento de “uma solidão tamanha, que mais completa que esta não poderia haver outra em lugar algum, nem no fundo do mar nem nas entranhas da terra”.
“Senhor e servo”, de certa forma, tem uma tessitura semelhante a “A morte de Iván Ilitch”. Um negociante, Vassili Andrêitch, a despeito do clima pouco convidativo, insiste em sair para fechar um negócio, a compra de um bosque na propriedade vizinha, que há muito o interessa. Nessa empreitada, leva com ele o seu serviçal, Nikita, e, puxando o treno, seu melhor cavalo, Baio. Os três empreendem uma jornada que mudará definitivamente suas vidas.
A terceira história, o conto “O prisioneiro do Cáucaso” é de criação anterior a “A morte...” e “Senhor e servo”. Narra a história de um soldado russo que servia no Cáucaso, o qual, a fim de atender o pedido de sua velha mãe, resolve retornar à casa desta a fim de casar-se. No caminho para o antigo lar, tão logo sai do forte onde servia, é feito prisioneiro por soldados tártaros. Decidido a não ceder aos seus inimigos e pedir que a família pagasse o seu resgate, escolhe fugir de sua prisão assim que surgisse uma oportunidade, o que só viria a ser possível graças ao fato de ser uma boa pessoa. Parece improvável? Leia e descubra.
Por fim, o conto “Deus vê a verdade, mas custa a revelar”. É a história de um jovem comerciante que, acusado de um crime que não cometeu, é mandado à Sibéria a fim de cumprir a sua pena. Impossibilitado de provar a sua inocência, só lhe restava rezar a Deus, único espectador, porém incapaz de testemunhar a seu favor.
Serviço:
Título: A morte de Iván Ilitch e outras histórias
Autor: Lev Tolstói
Editora: Amarilys (Editora Manole)
Ano: 2011
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Abraço,
Nelson Safi

Os duelistas

Não se engane, esta quase crônica não falará do livro "Os duelistas", do Joseph Conrad (que teve adaptação do Ridley Scott no cinema). O assunto será "O duelo", uma rara novela do Anton Tchékhov. Logo de início o livro chamou a minha atenção pelo seu projeto gráfico (nem sei se estou falando certo, vou logo pedindo desculpas a quem é profissional na área). Então, retomando, o livro é muito bonito: capa, contracapa, papel, fonte, etc. Parabéns ao Hélio de Almeida, responsável pela capa, projeto gráfico e ilustrações. O livro agrada à visão e ao tato.
Antes disso, há o fato principal de ser uma obra do Tchékhov, o que para mim, independentemente do projeto gráfico, é motivo mais que suficiente para me interessar pela história (o livro é muito bonito mesmo, não poderia deixar de comentar este aspecto primeiro). Outro fato interessante é que se trata de uma novela, nada usual em se tratando deste autor. A história foi publicada, originalmente, em forma de folhetins em onze edições do jornal Nóvoie Vriémia (de propriedade de seu amigo e editor Aleksei Suvórin).
O livro vem prefaciado por Elena Vássina, o que sempre ajuda na contextualização da obra em relação à sua época e ao conjunto da obra tchekhoviana. Leio os prefácios com a mesma satisfação de ler a própria história. Outro dado relevante é o fato de ser uma tradução diretamente do russo, que torna ainda mais interessante a leitura. É dele, o prefácio, que roubei o trecho abaixo, para dar uma ideia aproximada do livro:
"Em O duelo, o zoólogo Von Koren, entusiasmado com as ideias do darwinismo social, gostaria de exterminar em prol da humanidade Laiévski, o sujeito depravado e perverso. O antagonismo entre os personagens chega a tal ponto que os dois se enfrentam em duelo."
A composição dos personagens, o crescimento da tensão entre eles, que leva ao duelo que dá título ao livro, é o grande motor da história. Quando fui chegando ao fim bateu uma sensação estranha. Por um lado, de estar louco para saber como o Tchékhov resolveria a trama; por outro, de querer saborear o livro por mais tempo.
Serviço:
Título: O duelo
Autor: Anton Tchékhov
Editora: Amarilys (Editoria Manole)
Ano: 2011
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Abraço,
Nelson Safi

domingo, 25 de novembro de 2012

A literatura é edificante?


Li um texto muito bom no "estadão virtual", escrito pelo Mario Vargas Llosa; publicado originalmente no El País, Espanha (veja aqui). Ele comentou a decisão do governo francês de tirar da lista de comemorações nacionais o nome do escritor Louis-Ferdinand Céline, pelo fato de este ter ideias antissemitas. A crítica de Llosa se deve ao fato de que a reverência era dada à qualidade da produção literária de Louis-Ferdinand e sua relevância no contexto da literatura francesa. Ou, traduzindo para um linguajar bem popular, o cara é podre, mas o trabalho dele não, e são duas coisas bem distintas.
Feito o prólogo, quero dizer que gosto muito quando acontece de se ter as duas avaliações positivas; ou seja, a obra é de qualidade e o caráter do escritor segue a mesma linha. Com certeza daria para citar vários nomes, mas o que mais aprecio entre estes é o Tchékhov (Anton Pávlovitch Tchékhov). Até conhecer o Charles Kiefer (outro que se encaixa na dupla avaliação positiva) eu havia lido uns dois ou, quando muito, três contos do médico russo. E não fazia a menor ideia do quanto ele foi genial. Acredito que, depois da orientação do Charles, devo ter lido quase tudo que existe de traduzido deste escritor. E não foram apenas os contos, também suas peças teatrais e suas cartas tinham um grande valor literário. No "Cartas a Suvorin - 1886-1891" (Edusp, 2002) tem-se uma amostra da sensibilidade que o diferenciava dos demais escritores. Como exemplo, coloco este trecho de uma carta em que  falava de um aspecto da vida no campo, onde esteve passando suas férias de verão:
"... Os silvos, os arquejos, os roncos da máquina, surdos como os de um pião, que se fazem ouvir no mais duro da lida, o ranger das rodas, o andar preguiçoso dos bois, as nuvens de fumaça, os rostos suados e negros de quase cinquenta homens – tudo isso ficou gravado na minha memória como o Padre-nosso. E, desta vez também, passei horas a fio na debulha e senti-me extremamente bem. A máquina, quando trabalha, parece viva, tem uma expressão astuta, brincalhona, ao passo que as pessoas e os bois, ao contrário, parecem máquinas..."
E quem foi Tchékhov fora da literatura? Homem de origem simples, formou-se em medicina e a tinha como atividade principal. Dizia que a medicina era sua esposa e a literatura, sua amante (curiosamente, era a literatura que lhe garantia um aporte adicional de renda). Teve intensa atividade de cunho social e esteve envolvido no trabalho de construção de escolas. Em 1890, aos trinta anos, partiu para a ilha de Sacalina, local de prisões mantidas pelo regime czarista no mar do Japão, empreitada que o fez atravessar a Rússia pela Sibéria até chegar no oceano Pacífico. Lá estando, entrevistou todos os moradores-detentos, o que lhe possibilitou um retrato detalhado da situação e características do sistema prisional russo. De volta a Moscou, elaborou um dos trabalhos mais completos sobre o assunto, cujo impacto foi suficiente a ponto desse sistema ser revisto pelo regime czarista.
Em seu precoce final de vida, seus contos cresceram em tamanho e densidade e perderam o humor que os caracterizava. O livro "O assassinato e outras histórias" (Cosac&Naify, 2002) contém seis contos desta fase, escritos entre seus trinta e quatro e quarenta anos de idade (morreu enfraquecido pela tuberculose, em 1904, aos quarenta e quatro anos). Retiro um trecho do conto "O assassinato", uma história que, certamente, começou a ser germinada em 1890, quando de sua estada em Sacalina; portanto, cinco anos antes de ser escrita, em 1895:
"Certa noite, na enseada de Dveski, na ilha de Sacalina, um vapor estrangeiro ancorou e solicitou carvão. Pediram ao comandante que esperasse amanhecer, mas ele não queria esperar nem uma hora, dizendo que, se o tempo piorasse durante a noite, corria o risco de ter de partir sem carvão. No estreito da Tartária, o tempo pode mudar abruptamente em meia hora, e então o litoral de Sacalina torna-se perigoso. O ar havia esfriado e já se formavam ondas bastante fortes.
Da prisão de Voievódskaia, a mais miserável e severa das prisões de Sacalina, despacharam um grupo de detentos para uma mina. Tinham de encher barcaças com carvão, depois rebocá-las com uma lancha a vapor até o navio, que estava a mais de meia versta* da margem, e lá seria preciso começar o transbordo do carvão – um trabalho torturante, enquanto a barcaça se entrechoca com o navio e os trabalhadores mal conseguem se manter de pé, por causa do enjoo..."
* Versta: unidade de medida russa, equivalente a 1,067 Km.
Sei que poderia ter escolhido um trecho de outro conto, que fosse mais alegre ou, até mesmo, cativante. Procurei apenas mostrar o que faz dele, para mim, um escritor especial: um talento extraordinário para escrever e um caráter da mesma envergadura deste talento.


Abraço,
Nelson Safi